Sem
estrondos, a Câmara pôs para andar um projeto que abre uma brecha na Lei
da Ficha Limpa. Autoriza gestores públicos condenados pelo Tribunal de
Contas da União a disputar eleições. A proposta tramita na Comissão de
Constituição e Justiça.
O
autor chama-se Silvio Costa (PTB-PE). Escalado para a função de
relator, o colega Ronaldo Fonseca (PR-DF) declara-se a favor do projeto.
Nesta terça (30), realizou-se uma audiência pública. Entidades como
CNBB, OAB e MCCE (Movimento contra a Corrupção Eleitoral) criticaram a
iniciativa.
Num
de seus artigos, a Lei da Ficha Limpa incluiu as decisões do TCU no rol
das inelegibilidades. Um administrador com as contas rejeitadas por
vícios insanáveis fica automaticamente proibido de candidatar-se a
cargos eletivos por oito anos. Se o novo projeto for aprovado, esse
pedaço da lei vira letra morta.
Pela
proposta, o conta-suja só será excluído das urnas se a condenação do
TCU for confirmada por uma sentença judicial de última instância. Embora
receba o apelido de tribunal, o TCU não compõe o organograma do
Judiciário. É um órgão auxiliar do Poder Legisaltivo.
Tenta-se
abrir um buraco na lei que exige dos candidatos prontuários
higienizados antes que o eleitor tenha sentido o gostinho de vê-la
aplicada. O STF decidiu que a Lei da Ficha Limpa não valeu para 2010.
Depois, validou-a para as eleições futuras, a começar da disputa
municipal de 2012. Descobre-se agora que a lei corre o risco de chegar a
2014 manca.
Convidado
para a audiência pública desta terça, o presidente do TCU, ministro
Benjamin Zymler, criticou a proposta. Disse que condicionar a decisão do
tribunal de contas à confirmacão do Judiciário "é simplesmente fazer
com que se espere anos e anos a fio até o trânsito em julgado ou até que
um colegiado aprecie essa questão."
Traduzindo
Zymler: considerando-se o ritmo da Justiça brasileira, um sujeito com
as contas rejeitadas pelo TCU por improbidade administrativa pode
disputar um, dois, quem sabe três mandatos até que seja alvejado por uma
sentença definitiva, insuscetível de recurso.
O
advogado Pedro Henrique Braga, que representou a OAB no debate da
Câmara, classificou o projeto do deputado Silvio Costa de "retrocesso".
Falaram contra também o representante do MCCE, Júlio de Oliveira, e o
procurador da República José Gomes.
Pela
CNBB, discursou o advogado Marcelo Lavanére. Ex-presidente da OAB, o
doutor bateu abaixo da linha da cintura. Para ele, o projeto "vai na
contramão da decência." Em resposta, o autor Silvio Costa, de costas
para a manifestação do STF, declarou que a Lei da Ficha Limpa é
inconstitucional.
Por
quê? Na opinião do deputado, a lei fere a Constituição porque
desconsidera o princípio da presunção de inocência. E quanto à decisão
do Supremo, que considerou a Ficha Limpa constitucional? O veredicto não
foi unânime, desmerece Silvio Costa. Como se, num Fla-Flu em que o
Flamengo prevalecesse por 2 a 1, o juiz pudesse entregar o troféu ao
Fluminense.
A
despeito de todas as críticas, o relator Ronaldo Fonseca também não se
deu por achado. Ele diz não estar convencido de que a proposta rema na
contramaré da moralidade. "A única diferença do projeto para a Lei da
Ficha Limpa é que ele torna obrigatória a análise pelo Poder
Judiciário."
O
diabo é que essa "única diferença" pode livrar um gestor desonesto da
grelha da inelegibilidade por cinco anos, dez anos. Talvez mais. O
deputado já apresentou seu parecer. Recomendou a aprovação da novidade
na Comissão de Justiça. Pressionado, Ronaldo não exclui a hipótese de
reconciliar-se com o bom senso.
"Eu
jamais cometeria a loucura de ir contra a Lei da Ficha Limpa. Se ficar
convencido de que isso pode ocorrer, mudo meu parecer." Cabe perguntar: o
que diabos será necessário para convencer o deputado de que o óbvio é o
óbvio?
Preside a
Comissão de Justiça da Câmara o grão-petê Ricardo Berzoini (SP). Sabe o
que ele acha? Sim, Berzoini também defende o ajuste na lei. Chama o
retrocesso de "aperfeiçoamento." Declara: "Não podemos fazer um debate
maniqueísta, onde há contrários e favoráveis à Lei da Ficha Limpa.
Precisamos garantir o seu cumprimento." Hã, hã...
Todo
esse movimento ocorre uma semana depois de a Câmara ter aprovado,
contra uma resolução do TSE, o projeto que libera as candidaturas de
políticos com contas de campanha rejeitadas pela Justiça Eleitoral. A
toque de caixa, a proposta já seguiu para o Senado. Evidência de que, no
Legislativo, só a lógica caminha em ritmo de tartaruga paraplégica.
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